01/10/2018

LAMECHICE PARENTAL!


O homem é aquele ser muito estranho que quer sempre dar a entender que é uma pedra sentimental, impenetrável, inquebrável, inexpressiva e inamovível, mas que se desfaz em mil e um pedaços quando estão envolvidos os filhos.

A história que vos vou contar resume-se aos últimos minutos do jogo de ontem. 

Estávamos já nos descontos de um jogo que teimava em permanecer empatado. O relógio, no entanto, era implacável na sua cavalgada até ao anunciado fim de jogo. O jogo nem me estava a correr particularmente bem: ainda pesado, com alguma prisão de movimentos, cansaço a afectar cedo e acima de tudo lances pouco conseguidos em catadupa, entre passes falhados, cortes ineficazes e falhanços incríveis dentro da área adversária.

Num canto a nosso favor, vejo o meu pequeno Miguel, com a inocência dos seus 3 anos, agarrado à grade do campo com muita atenção ao que se passava. Numa jogada ao estílo de arma psicológica contra o adversário, gritei bem alto: "MIGUEL!!! OLHA BEM ESTE GOLO QUE O PAI VAI MARCAR!!!"

Logo as bocas começaram! "Olha este! Estás cheio de fé!!", "Não marcas nem que me escanifobetique todo" e "Queres o prémio de MVP, é?!" foram alguns dos comentários que ouvi nos momentos imediatamente a seguir. Mas eu, homem como sou, mantive-me completamente impávido face às provocações dos outros, pensando no meu íntimo "o que vale é que se não marcar ele também não percebe bem isso..."

O canto foi cobrado, mas nada daí adveio. No entanto, os adversários não conseguiram sair com a bola em contra-ataque. Recuperámos rápido e eles saíram em construção. No entanto, ao chegar perto do círculo central, interceptei um passe para o meio e arranquei em direcção à área adversária. Com um central pela frente, fiz uma ligeira desaceleração seguida de nova aceleração de corrida puxando a bola para a minha esquerda. O defesa tenta interceptar "à queima", mas falha rotundamente, permitindo-me passar por ele como uma flecha e entrar na área isolado, descaído sobre a esquerda. Controlando a bola com o pé direito, tinha agora o guarda-redes pela frente, um defesa a aproximar-se pela minha direita e um companheiro sobre o lado direito do campo. Um passe bem tenso para o meu colega era golo certo. Mas eu tinha prometido ao Miguel, e para todos os efeitos só havia o guarda-redes entre mim e a baliza, se me despachasse a resolver o assunto antes de o defesa me cortar a bola.

Ameaço com o corpo um remate de pé direito. O guarda-redes coloca-se em posição de atacar a bola mas não cai. É nessa altura que percebo o que vai fazer. Dou um passo com o pé esquerdo e quando estou a tirar o pé direito do chão, ele movimenta o seu corpo para a sua esquerda. Chuto com o pé direito para o poste mais perto de mim, enquanto ele cai para o lado contrário, com a cara de desespero de quem procurava interceptar um passe que nunca existiu. É GOLO!!!

Grito "golo" e corro imediatamente em direcção à rede! Depois, riu-me à gargalhada e grito mais umas vezes "É GOLO, MIGUEL!!! É GOLO, MIGUEL!!! HAHAHAHAHAHA!!!" enquanto tapo a cara com a camisola, num festejo à Ravanelli! Pela malha da camisola, vejo o Miguel aos saltos, sempre com as suas mãozinhas agarradas à rede! Quando chego perto dele, ajoelho-me a fingir que ia a deslizar pela relva (mas sem deslizar, que a relva sintética queima que se farta), tiro a camisola da cabeça e agarro a rede juntamente com os seus deditos, enquanto ele continua ao pulos a gritar "golo"! "Eu não disse?! Eu disse que ia marcar, não disse?!"

A bola nem foi ao meio-campo. O jogo terminou logo ali e o Miguel deu a volta e entrou no campo para me abraçar. Nesse abraço, tinha de vir a pergunta mais relevante de toda esta novela:

"Pai, po'que é que aquele sinhô'e caiu?!"