05/11/2016

O MEU DIA DE FÉRIAS DAVA UM FILME DO STEPHEN KING



Pouco passava das oito e meia quando regressei a casa. A mulher já tinha saído para o trabalho, eu tinha acabado de levar os miúdos à escola e agora... bom, agora eu estava dispensado dos treinos, para descanso e alívio mental. O próximo jogo é de Taça contra um clube de escalão inferior e serão convocados os menos utilizados, pelo que foi-me dada folga de três dias. Decidi por isso que ia fazer algo que um homem maduro e adulto faz e que não posso normalmente fazer com os putos em casa: dormir! Yeeeeh! Vá, não critiquem, pois há 16 meses que acordo a meio da noite para ajeitar o cobertor, parar birras, procurar chuchas perdidas ou dar um leitinho de reforço a um "crianço" esfomeado. E eram oito e meia da madrugada...

O problema é que não tinha sono. "Humm, tão cedo e já de olho desperto?! Não importa, ao menos está quentinho aqui!" Graças às maravilhas tecnológicas, pus-me a par da actualidade mundial e desportiva, vi as novidades das redes sociais e, inevitavelmente, tive de atacar o reino de outro incauto jogador e saquear todos os seus recursos naturais e as riquezas do seu castelo. Ah, a barbárie virtual... que maravilha!

Achei entretanto que era boa hora de me levantar definitivamente e então sim, fazer algo de útil para a humanidade. Faço a barba, ponho-me ainda mais bonito que o habitual e volto ao quarto para escolher a roupa. Nessa altura sou surpreendido por uma das visões mais aterradoras com que alguma vez me poderia deparar: um homem no meu quarto, junto à janela!


- Mas que raio está aqui a fazer?! Saia imediatamente daqui! - disse eu enquanto agarrava na cadeira de quarto da minha mulher!
O homem, um velho, de óculos "tartaruga", olha para mim e calmamente responde:
- Señor, esta es mi casa de siempre.
Bonito, tinha um "esclerosado" espanhol em minha casa, e nem sabia como este homem havia entrado.
- Amigo, venha comigo, eu ajudo-o a voltar para sua casa.- respondi enquanto o homem balbuciava mais uma série de palavras em castelhano com a mesma calma anterior.

Quando agarro o seu braço para o encaminhar para a saída, uma voz de mulher por trás de mim diz:
- Caro senhor, ele diz a verdade, ele sempre viveu aqui."
Era evidente agora que eu e a minha cabeça de vento havíamos contribuído para todo este imbróglio, ao não fechar a porta de casa.
- Oiça, não foi a este senhor que eu comprei a casa, portanto sei que não vivia aqui. Por isso, agradeço que o leve daqui e saia com ele, por favor! - disse eu em tom ainda mais agressivo, também por estar piúrso por ser distraído.
Então a senhora, numa calma tão serena quanto a do velho espanhol, respondeu:
- Senhor, ele morreu aqui. Tal como eu.

Nesse momento, olhei para a senhora, e depois esbocei um sorriso.
- Ok... já percebi tudo... um sonho. Vou acordar. Adeusinho!

Fechei os olhos, como me disseram para fazer em miúdo nos pesadelos (porque nos sonhos nós nunca fechamos os olhos, nem os piscamos, e se fecharmos, acordamos), abri-os, mas as duas personagens continuavam diante de mim. Usei então o método dos filmes e banda desenhada: belisquei-me com força! Doeu... Mas a mulher e o velho continuavam alí, calmamente a olhar para mim. Ele continuava a falar, com uma voz calma, em tom baixo mas com a velocidade característica dos espanhóis, que não permitia que eu percebesse a maioria das coisas que dizia. Decidi agarrar no telemóvel e tirar uma foto, pois das duas uma: ou serviria de prova que estas duas pessoas haviam invadido a minha casa ou não apareceriam se fossem fantasmas. Efectivamente, ao apontar-lhes o telemóvel, eles não apareciam no ecrã. Corri porta fora o mais rápido que pude, e quando chego à rua, novo choque.

"Caramba, tanta gente?! Mas que se passa aqui?!?!", pensei eu. Uma rua de bairro parecia hoje a Rua Augusta em dia de desembarque de cruzeiros do norte da Europa em pleno Verão! Tive o impulso de voltar a agarrar no telemóvel e apontá-lo em modo câmara fotográfica e 90% das pessoas desapareceram da imagem. "Isto não é possível! Mas agora ando a ver fantasmas?!?!"



Eis quando aparece o Gonçalves. Ex-companheiro de equipa no Bluetech F.C., defesa de bom porte e tecnicamente evoluído, já não o via há mais de ano e meio.
- Shôr Strik3r, 'tá bonzinho?! - disse ele, na sua forma característica de cumprimentar!
- Gonçalves!!! Ajuda-me! Preciso de ajuda urgente!

A sua expressão mudou da sua postura habitual de descontracção para um ar algo preocupado. Perguntando o que se passava comigo, convidei-o a voltar para minha casa, onde poderíamos falar melhor.
- Posso entrar?- perguntou ele quando abri a porta.
- Sim, claro, anda, por favor! Entra, porque tenho aqui um problema que não sei como resolver!

Seguimos para a cozinha. Junto da janela comecei a contar o que se havia passado, numa tentativa de não parecer muito louco. A meio, sou entretanto interrompido por três tipos pendurados na escada de incêndio, com um ar muito pouco amigável, a gritar:
- Oh meu, deixa-nos entrar! Deixa-nos entrar! Prometo que não te aborrecemos muito!

 Apontei o telemóvel para eles e, como era espectável, eles não apareciam no monitor. É nessa altura que eu deixo de rodeios e pergunto:
- Gonçalves, tu consegues ver estes três galalaus aqui pendurados!
- Claro que sim!
- Tu também os vês?!
- Sim. São fantasmas. São espíritos de pessoas que morreram na rua e procuram um sítio para se proteger, pois continuam a sentir o frio, o calor, o sol, a chuva e todas as coisas que os vivos sentem. O casal de velhotes está aqui porque aqui morreu e estão bem. Estes só entram na tua casa se tu os convidares.
- Mas que raio aconteceu para eu os começar a ver hoje?! E tu, desde quando os vês?! Como sabes tudo isso?!
- Sei isto porque é algo que aprendemos assim que morremos. É como se esta memória fosse gravada na nossa cabeça assim que "batemos as botas". - disse o Gonçalves, de forma muito calma. Aliás, ele demonstrava uma calma muito mais serena que o habitual.
- Desculpa?! De que raio estás a falar?! - perguntei, ainda mais confuso que no início.
- Que eu também sou um deles.
Aponto o telemóvel para ele e constato que se trata de um fantasma.
- Mas então... então?!... como conseguiste entrar na minha casa?!?!
- Tu convidaste-me a entrar, lembras-te?!

Eu estava completamente atónito com tudo isto.
- Mas... mas como?! Quando isso aconteceu?! Como morreste?!
- Foi há uns meses... um acidente... andava pela rua, perdido, e encontrei-te aqui agora. E estou contente, pois agora terei paz sob um tecto.

Nesse momento, ouvindo as suas palavras, sorrio. Sorrio porque percebi tudo.
- F***-se Gonçalves, obrigado. Agora percebi tudo.
- É bom, Strik3r, estou muito agradecido por poder ficar aqui na tua casa.
- Não, Gonçalves. Percebi que isto é tudo uma GANDA TANGA!!!
- Porquê? Porque dizes isso? - pergunta ele, com aquela calma já evidenciada pelo casal de velhos.
- Porque eu vi um post teu no Facebook há pouco. É tudo um sonho! HA HA HA!

Nesse momento, o Gonçalves abre os olhos de espanto e fala qualquer coisa. Qualquer coisa imperceptível e sem nexo, mas sem qualquer importância, porque tudo à sua volta começa a ficar turvo, sem forma.

- Vou acordar! Adeusinho!



Acordei na cama. Ainda não eram dez da manhã. O tablet estava tombado sobre a almofada da minha mulher. Quem diz que das redes sociais nada se aproveita, eis a prova provada que tal não é verdade. Quanto mais não seja, serve para sabermos se um sujeito está vivo, e suporta a teoria do Rui Unas (num âmbito ligeiramente diferente) de que "a verdade está na net"!

Entretanto, ri-me de mais uma aventura surreal pelos meandros da minha mente, e com a convicção que da próxima vez tenho de verificar o tipo dos cogumelos que uso para os bifes ao jantar. Sim, isto não pode ter sido só do meu subconsciente... e levantei-me da cama.

Quanto a ti, Gonçalves, desejo uma longa vida para ti. Muito longa mesmo.